sábado, 9 de julho de 2016

Eu sou voluntária numa associação, logo, sou polícia, veterinária, advogada, super-mulher, Santa Casa da Misericórdia e tudo e tudo e tudo

Ser voluntário de uma associação da causa animal, para além de ser uma experiência enriquecedora, uma oportunidade de crescimento pessoal, um desafio e um privilégio, é também colocar em si próprio um alvo gigantesco que é visto inclusive do espaço, qual muralha da China.

A partir do momento em que nos tornamos voluntários, não só o universo pressente, e nos atira esquina sim esquina não, com um animal atropelado, uma ninhada abandonada, um gato com um olho fora da cavidade ocular, cães dentro de um contentor e por aí fora, qual roleta russa, com a diferença de que sai sempre bala, como também os nossos familiares, amigos, conhecidos e mesmo estranhos que conseguiram o nosso contacto através de um conhecido, amigo, ou familiar nosso (não adoramos isso?), ou até mesmo de outro estranho que já tinha conseguido o nosso contacto previamente, passam a ter-nos em speed dial para qualquer eventualidade, que pode ir desde "vi um gato doente, quase a morrer ali na rua x, o que é que podes fazer?", "vi uma gaivota ferida, o que é que podes fazer?",  "ali naquela rua há muitos gatos, o que é que podes fazer?", "o meu gato anda a coçar-se muito, o que é?" até "anda um cão atrás de mim, o que faço?", ou "vi um cão ao passar na auto-estrada, podes ir buscá-lo?".

Se és voluntário, és como o super-homem, ou o batman, ou qualquer super-herói, não porque sejas imensamente apreciado e façam action figures com a tua fronha, mas porque de cada vez que há um desastre, toca um alarme qualquer invisível e tu tens de largar tudo e ir a correr salvar o dia. Se fores, com sorte, ainda levas uma palmada nas costas, uma bolachinha, ou uma beijoca. Se não fores, levas com um atestado de inútil, insensível e porque só ajudas animais quando te convém, só queres é parecer herói, afinal de contas és voluntário e fazes o quê?

Às vezes fico a pensar, se eu não fosse voluntária, que solução é que estas pessoas procurariam, quando confrontadas com estas situações? Quem seria a sua muleta? Antes de mim, como é que elas viviam?

Porque sou voluntária, não posso ter espaço próprio, tenho de ser toda eu uma ferramenta para o outro. Tenho de largar trabalho, família, amigos, lazer, quando toca o tal alarme. Se não o faço, sou uma pessoa terrível, que é capaz de ter vida própria, quando há tantos animais a sofrer. Mas curiosamente, este tipo de exigência e comentário, esta indignação da nossa falta de sacrifício, vem quase sempre de pessoas que não fazem voluntariado, que não trabalham activa e diariamente pelo bem-estar animal. São pessoas que têm vida própria, espaço próprio, família, trabalho, amigos, lazer, férias (ah! férias!), enfim, cidadãos e cidadãs comuns, ou os chamados activistas da internet, aquelas pessoas que partilham 50 apelos de animais para adopção/perdidos/feridos, que fazem apelos em caps lock, e que insultam Deus e o mundo quando não recebem resposta, mas que não estão elas próprias dispostas a acolher os animais da rua (excepto obviamente se tivessem muito dinheiro,  "ai se me saísse o euro-milhões", ou uma casa muito grande, " ai se eu tivesse um pátio ou um jardim", ou então um santuário, ui os santuários, "fazia um santuário e resgatava os animaizinhos todos". Se estas pessoas fossem todas ricas não havia um único animal na rua, era uma utopia só). Para elas, o facto de partilharem 50 apelos, ou até fazerem donativos, dá-lhes todo o direito de mandarem e desmandarem em voluntários, associações, abrigos, canis, quiçá o mundo!

Como é que é possível um voluntário não sair de casa às tantas da noite para ir buscar o animal muito ferido visto por aquela alma caridosa, que prontamente foi para casa sentar-se ao computador dizer que viu e exigir acção? Mas afinal os voluntários servem para quê? Dormir? Mas como é que conseguem dormir, comer, ler, ouvir música, ver um filme, sair com os amigos, quando há animais a sofrer a todas as horas? Mas será que não sabem que têm de estar 24h por dia, 7 dias por semana e 365 (ou 66) dias por ano disponíveis, para que as outras pessoas possam fazer essas coisas de gente normal? Ninguém lhes mostrou as letras pequeninas do contrato invisível assinado a sangue aquando a sua entrada no mundo do voluntariado?

Se és voluntário, tens obrigação de salvar todos os animais que te despejarem à porta (esta porta pode ser física ou virtual, na maior parte das vezes é a segunda). Tens de pegar na proverbial batata, para que a outra pessoa não queime as mãozinhas, afinal de contas tu tens calo, não sentes o quente.

Se és voluntário, tens de pegar na lei e fazer dela o teu instrumento de justiça, tens de obrigar as pessoas a tratarem bem os seus animais, tens de retirar o cão daquele dono que o prende na varanda, tens de exigir que ele o passeie, que o trate bem, tens de ir lá bater-lhe à porta porque o vizinho que não quer dar a cara vê o pobre do cão preso dia e noite, à chuva, ao frio e ao sol e isso incomoda-o, coitado.

Se és voluntário, tens de conhecer intimamente a anatomia animal, tens de saber todas as doenças, todos os vírus, todos os tratamentos, todos os medicamentos e todos os produtos, conhecer todos os veterinários e as suas tabelas de preços, para que possas prontamente informar as pessoas que não sabem estas coisas.

Se és voluntário, tens de saber a lei até à última vírgula, para que possas informar as pessoas de toda e qualquer situação, possível ou imaginária, apresentar-lhes todos os cenários possíveis, todas as loopholes, todos os caminhos que podem seguir para que elas não tenham de perder sequer um segundo do seu precioso tempo a pesquisar a informação que querem.

Se és voluntário, tens de ter poderes sobre-humanos, tens de sobreviver sem beber, sem comer, sem dormir, tens de conhecer apenas uma palavra: abnegação (definição: renúncia espontânea do interesse, da vontade, da conveniência própria).

Se és voluntário, tens de ter um espaço infinito para receber todos os animais que cruzam o caminho das pessoas, metes cães em gavetas, gatos em caixas, andas com eles nos bolsos, fazes malabarismo, tu lá sabes, mas não podes nunca dizer não, porque isso quer dizer automaticamente que és uma pessoa horrível.

Ser voluntário é ser muitas vezes um espelho cruel, pois aquilo que as pessoas vêem não somos nós, mas o seu reflexo, e serem confrontadas com a sua cobardia, com a sua apatia, com a sua inércia, é um choque demasiado grande, pelo que entram em negação, e vêem apenas aquilo que querem ver, a pessoa à sua frente, física ou virtualmente, que tem de fazer aquilo que elas não têm coragem ou vontade de fazer. Ajudar um animal dá trabalho, é muitas vezes esgotante, pesaroso, o futuro é incerto, pelo que a opção mais fácil é deixar que outra pessoa resolva.

Ser voluntário é ser também saco de boxe por vezes, em que cada soco virtual é terapêutico para a pessoa do outro lado. Se despejar em ti todas as suas frustrações, fica mais vazia, mais leve, dorme melhor. Afinal de contas o ecrã está ali a proteger ambas as partes, insultos são só palavras, balas de borracha.

Generalizações são isso mesmo, e mesmo existindo uma base que dá razão à generalização, esta nunca reflecte a realidade em pleno. Aquilo que descrevo acontece diariamente, no mundo inteiro e não é algo raro ou uma generalização que não tem uma base sólida. Mas não é a realidade completa, não é a história toda. Há muitas pessoas que respeitam e apreciam o trabalho feito por voluntários, que amparam em vez de atirar ao chão, que apoiam com atitudes e palavras, que compreendem que tal como todos os outros, estamos limitados pela nossa humanidade, ao mesmo tempo que a mesma não tem limites. A todas essas pessoas, obrigada.

Ser voluntário é também uma alegria imensa. É um privilégio que não trocaria por nada. É ser parte de algo maior do que apenas a pessoa que somos. É ver também o melhor do ser humano, a par com o pior.

Há dois anos que sou voluntária, e sou a primeira a exigir demais de mim, a pôr a minha vida própria de lado, a sacrificar família, amigos, tempo de lazer, descanso, e não sou exemplo para ninguém. Não é algo para ser admirado. Sempre vivi obsessivamente e esse excesso de trabalho é apenas um sintoma da minha personalidade demasiado intensa. Todos os dias tento lembrar-me de que não sou infinita, não sou imensa, omnipresente ou omnipotente, que se não cuidar de mim, não tenho condições para cuidar da causa a que me dedico. Aos poucos vou interiorizando isso e nuns dias consigo superar essa tendência, noutros nem tanto. Mas ainda que eu exija de mim, isso não dá a mais ninguém o direito de me exigir o que quer que seja.

O trabalho a que me dedico na associação onde sou voluntária, é do mais importante que já fiz na minha vida. Faço-o com a maior seriedade, convicção, e orgulho. E são mais os dias em que me sinto feliz, do que os que me sinto frustrada ou triste.

Não sou polícia, nem veterinária, nem advogada, nem super-mulher, e muito menos Santa Casa da Misericórdia. Sou apenas voluntária.

[Exempla, magis quam verba, movent]

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Eu capturo gatos, logo, sou uma crazy cat lady

Para quem não está por dentro do método CED (Capturar-Esterilizar-Devolver), ver um grupo de pessoas na rua, com armadilhas, transportadoras, toalhas, garrafas de coca-cola de 1L, corda e latas de atum, que se sentam em silêncio, escondidas, à espera que os gatos apareçam, por vezes a chover e elas de óculos de sol, é uma experiência no mínimo desconcertante. As expressões faciais variam entre simples surpresa, confusão, incredulidade, choque, confusão, e até indignação.
Mas então o que é isto de andar a capturar gatos com armadilhas? O que é o CED?
O CED é um método humano e eficaz de controlo populacional de animais errantes. O mais humano e o mais eficaz.
É usado maioritariamente em colónias de gatos, mas também em matilhas (embora este assunto tenha outras ramificações, fica para a próxima).
Porque é que se faz o CED? Qual o seu propósito?

Que pessoas são estas que andam a apanhar gatos da rua e a estragar os animais esterilizando-os e ainda por cima a mutilá-los cortando-lhes as orelhas? Estes disparates são apenas um pequeno exemplo do que ouvimos ao fazer este trabalho. Outro disparate muito ouvido é de que os animais foram feitos para estar na rua, foram feitos para procriar e andar à sua vontade e nós não temos o direito de andar a brincar de Deus.

Quem faz parte da causa animal, seja trabalhando com resgate e adopção de animais abandonados ou trabalhando com esterilização de animais errantes, sabe o quanto é importante a esterilização dos animais de companhia.
Há demasiados animais de companhia, ponto. Não há pessoas suficientes para adoptar todos os animais abandonados, em abrigos, nos canis. Há abandonos constantes de animais. Depois ainda há quem compre animais. É um ciclo interminável.

Para além disto, os animais que vemos na rua (e os que não vemos) não são todos animais abandonados. A maior parte deles são animais que já nasceram nas ruas, fruto do abandono de algum animal é certo, mas muitos são fruto do abandono de um animal há já muito tempo. São os chamados animais silvestres, cães ou gatos.

Um gato silvestre é um gato fisica e geneticamente idêntico ao nosso gato de casa, é na mesma um animal doméstico, é na mesma um felis silvestris catus, não confundamos silvestre com selvagem (pode parecer básico, mas acreditem que também acontece a algumas pessoas). Também não confundamos silvestre com bravo, um gato silvestre não é um animal possuído que nos vai atacar se lhe tentarmos fazer uma festinha ao passar por ele na rua e deixar-nos a esvair em sangue. Não, ele vai é fugir. Um gato silvestre não é automaticamente um gato agressivo, não é o seu temperamento que define se ele é silvestre ou não.

Qual é então a diferença entre um gato silvestre e um gato dócil? A diferença essencial entre um gato silvestre e um gato dócil (e é aqui que se encontra o pepino senhoras e senhores, é aqui que o parto custa a acontecer e às vezes tem de ser a ferros) é que um gato silvestre não aprecia, não aceita e não procura contacto humano. É isto gente. Os animais silvestres não querem nada connosco. São animais que nunca foram socializados nem manuseados por pessoas e que logicamente não estão habituados ao contacto humano. Continuam a depender de nós, mas não permitem que nos aproximemos.

Os animais que vemos na rua podem ser dóceis, podem ser assilvestrados, podem ser silvestres, enfim, não é tudo a preto e branco, há animais que foram abandonados e com o tempo ficaram assilvestrados, mas que com alguma paciência poderiam voltar a apreciar contacto humano, há animais silvestres que não querem nada com ninguém, mas que até se deixam tocar pelos seus cuidadores (uma espécie à parte os cuidadores, falarei em maior profundidade noutra altura), há animais que até se deixam tocar, mas se os metemos numa casa são infelizes ou até miam incessantemente até os devolvermos ao seu meio, enfim, há algumas zonas cinzentas que temos de saber identificar.
Mas há algo que é completamente preto e branco para quem se dedica ao CED de corpo e alma e para quem nele acredita:

O lugar dos animais dóceis é em casa, o lugar dos animais silvestres é na rua.

A violência de que um animal dócil é alvo ao ser abandonado, ao ser colocado na rua, sujeito aos perigos, aos outros animais, ao frio, à chuva, sem contacto humano, sem conforto, é exactamente equiparável à violência que atinge um animal silvestre ao ser colocado numa casa, fechado, sem a sua liberdade, forçado a um contacto humano que não aprecia e que o deixa em pânico.

Isto senhoras e senhores, é absolutamente preto e branco e é o tal parto difícil que vemos diariamente, mesmo dentro da causa animal, pois nem todos os que cá andamos temos o bem-estar do animal em mente, ou mesmo que tenhamos, nem todos sabemos exactamente em que consiste esse bem-estar, não só físico, como psicológico.

Agora que sabemos o que é um gato silvestre (vou deixar os cães de fora até uma próxima), porque é que fazemos este trabalho? Porquê capturá-los, esterilizá-los, cortar-lhes a ponta da orelha esquerda (há espertos que fazem do lado direito mas não vamos ligar a esses) e devolvê-los? Devolvê-los! Sim, porque a par das pessoas que dizem que os animais pertencem todos à rua e que deveríamos era estar todos quietos e deixá-los andar, há também as pessoas que acham que os animaizinhos coitadinhos, têm de sair todos da rua, irem todos para abrigos, refúgios utópicos e paradisíacos, para casas nem que seja tudo ao molhe e fé em deus, sem condições e todos em stress constante por serem animais por natureza solitários e territoriais e serem obrigados a dividir o espaço, fechado, com dezenas de outros.

Nós esterilizamos animais, porque esterilizar é proteger. Esterilizamos animais porque vemos diariamente as ninhadas a morrer, os animais a sofrerem nas ruas, as gatas com infecções de útero e tumores mamários, vemos os atropelamentos, os envenenamentos, vemos a crueldade, vemos os ferimentos, as mortes atrozes.

Acima de tudo, esterilizamos porque vemos o futuro.

Porque olhamos para uma gata gestante e vemos o futuro. Vemos o futuro daquela gata, das crias dela, das futuras crias das crias dela, das futuras crias das crias das crias dela e sempre assim até ao infinito, porque é isso, é o infinito, é um ciclo interminável de procriação e sofrimento.

E pode parecer contraditório eu dizer "o lugar dos animais silvestres é na rua" e depois mais à frente dizer que esterilizamos para que não sofram na rua. Mas não é. É apenas lógico. O lugar deles é na rua porque já lá estão e já lá nasceram. Não significa que seja o ideal ou que queiramos isso para os animais que ainda não nasceram, não queremos, e por isso esterilizamos.

E agora que já está explicado porque é que estragamos animais, falta explicar porque é que os mutilamos. Porque raios andamos a cortar bocados de orelhas às pobres criaturas.

O corte da ponta da orelha esquerda, é o sinal internacional que identifica um animal esterilizado. Ele é feito sob anestesia quando o animal está na cirurgia e é indolor. Eu não posso afirmar a 100% pois não sou gato e não tenho corte, mas imagino que seja o equivalente a fazermos um furo na orelha, com a vantagem de que o gato está a dormir quando isso acontece, pelo que não sente absolutamente nada.
É o método de identificação mais eficaz e seguro que existe no momento e é essencial para quem trabalha na causa animal saber identificar quais animais já foram esterilizados. É algo que os protege de intervenções desnecessárias (no caso das fêmeas por exemplo, só anestesiando e abrindo de novo é que o veterinário pode efectivamente comprovar que a mesma já está esterilizada) e de mais stress e também algo que os protege de serem capturados por canis, pelo menos nos municípios em que estes respeitam o trabalho de associações, que felizmente, cada vez vão sendo mais.

Eu capturo gatos, logo, tenho consciência do flagelo que é a superpopulação de animais de companhia.

Não andamos a brincar às crazy cat ladies. Este trabalho é para mim o que de mais importante já fiz, irei fazê-lo até ao meu último suspiro, ou até esterilizar os animais errantes de Portugal inteiro, o que acontecer primeiro.

Trago na pele a imagem desta ideia que defendo e não há um segundo sequer em que duvide de que é este o caminho a percorrer para acabar com o sofrimento dos animais que vivem nas ruas.

Esterilizar é proteger.

[Scientia potentia est]

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Eu gosto de animais, logo, não gosto de pessoas

Esta falácia é infelizmente considerada verdadeira por muitas pessoas, de um lado e do outro da questão. Pelas pessoas que gostam de animais, pelas que não gostam e pelas que andam no meio.
É uma lógica muito perigosa e errada. É errada, pois não podemos simplesmente presumir que as pessoas que gostam muito de animais, ainda que por vezes de uma forma radical e excessiva, não têm em si a capacidade de empatizar com com os seus semelhantes. E perigosa, quando essas mesmas pessoas começam a acreditar nesta máxima e se deixam levar pelas acções que vêem e julgam todos os humanos da mesma forma.
"Animais vs Humanos" é conceito que não existe, que não pode existir, em qualquer contexto, mas sobretudo na causa animal. Pode parecer contraditório, visto que directa ou indirectamente, quase todo o sofrimento animal é causado pelo Homem. Seja ele em forma de abandono, crueldade, uso para alimentação, entretenimento, saúde, destruição de habitat, etc. Somos responsáveis e criadores de todos os problemas da causa animal actualmente existentes. Por isso é normal as pessoas que mais assistem a todo o tipo de situações atrozes sentirem desvanecer em si a capacidade de compreender e perdoar o outro. É muito fácil ceder ao desespero, à desconfiança, ao ódio até, tomar o todo pela parte, generalizar e deixar de acreditar no bem intrínseco da humanidade.
É também muito fácil para as pessoas que não estão tão envolvidas na causa, ou que não procuram a companhia de um animal (não querendo dizer que não gostam de animais), julgar que todos os que fazem parte da causa animal e que tiram animais das ruas, alimentam animais nas ruas, andam por aí de armadilhas, a cuidar, a esterilizar, a tratar, a adoptar, são maluquinhos que não se dão com gente e que não sabem viver em sociedade, e daí procuram a companhia animal.
Por tudo aquilo que eu vejo, acredito que quem sente empatia por animais, sente também pelos seus semelhantes, tem essa capacidade, se não ceder ao pessimismo, se não perder a esperança na bondade humana. E por sua vez, pessoas que não sentem qualquer tipo de empatia por animais e obviamente aquelas que não têm qualquer problema em maltratá-los, abandoná-los à sua sorte, matá-los até, muito dificilmente terão em si uma grande empatia para com a humanidade em geral...
Obviamente que mesmo eu aqui estou a generalizar e quem faz parte da causa animal, sabe bem que não é só por gostarmos de animais que isso nos torna automaticamente boas pessoas...
Não temos todos de ter 20 gatos em casa, não temos todos de andar a alimentar animais na rua, não temos todos de ser voluntários em associações da causa. Temos todos sim, de respeitar todas as vidas, sejam elas humanas ou não. Temos de valorizar cada vida. Ou troco de verbo, não temos, mas na minha opinião, devemos. Empatizar com o outro, seja ele o nosso vizinho idoso que mora sozinho, ou o cão do outro vizinho, é apenas um passo para sermos melhores vizinhos, melhores amigos, melhores humanos.
A causa animal é uma causa que mexe com as entranhas, que mexe com sentimentos, com ideias, ideais, filosofias de vida. Há pessoas sensatas, há pessoas radicais, há pessoas maravilhosas, há pessoas horríveis, há pessoas que lutam, há pessoas que só fazem que lutam, há pessoas que ajudam, há pessoas que atrapalham, há pessoas que realmente gostam de animais e há pessoas que se infiltram na causa por todos os motivos, menos os animais. Há um mundo de diferenças. Mas também de semelhanças. E às vezes esquecemo-nos disso. Eu por mim falo. Por vezes esquecemo-nos de que aquilo que nos une, é muito maior, ou deveria ser, do que aquilo que nos separa. Somos tantos nesta causa, a nossa força seria tão massiva se fôssemos uma única voz, que tantas vezes as pessoas que boicotam a causa animal são as que fazem parte da causa animal.
Somos muitas vezes incompreendidos, sim, somos muitas vezes julgados e muitas vezes impedidos de avançar. E tantas outras vezes viramo-nos uns para os outros, uns contra os outros, em vez de darmos os braços e nos virarmos na mesma direcção. Esquecemo-nos que o outro é igual a nós, ainda que seja diferente, ainda que o seu método seja diferente, ainda que tenha ideias diferentes.
Não somos uns fanáticos, nós os da causa animal. Somos humanos e vamos tentando permanecer humanos.
Para aquelas pessoas que dizem "eu preferia salvar um animal do que uma pessoa" ou "eu preferia salvar uma pessoa do que um animal" ou "quanto mais conheço as pessoas, mais gosto de animais" ou então "um animal não vale uma vida humana", por favor, a todos, não digam disparates. Não manifestem preconceitos hipotéticos. Porque isso é tudo hipotético e generalista e não faz sentido nenhum. As ocasiões em que alguém é confrontado efectivamente com uma escolha e tem de escolher entre salvar um humano ou um animal, não são assim vulgares nem acontecem com uma frequência que justifique esse tipo de raciocínio, talvez na Idade da Pedra fosse assim. Todas estas expressões são hipotéticas e irrelevantes, para além de perigosas e só perpetuam esta dicotomia falsa, que não tem de existir. Não tem de ser "animais ou pessoas". Não temos de ajudar só animais ou só pessoas. Isto não é uma escolha a que somos obrigados, não é um confronto. Cada pessoa tem em si espaço para tudo, podemos ser tudo o que desejamos ser e conter em nós sentimento que chega para todos. Podemos ir ao canil adoptar um animal em risco e ao chegarmos a casa carregarmos as compras do nosso vizinho idoso. Podemos ajudar uma associação da causa animal e uma que ajude pessoas. Podemos promover a união entre associações que ajudam animais e associações que ajudam pessoas. Podemos ensinar os nossos filhos a respeitar o seu semelhante e a respeitar todas as formas de vida. Ensinar que não é correcto usar violência contra o seu semelhante ou contra outros animais. Não temos de escolher e não temos de criar uma linha divisória invisível que separa quem se dedica aos animais e quem se dedica às pessoas. Isso não existe. Não criem muros impenetráveis, criem pontes.

Eu gosto de animais. E também gosto de pessoas. É mais fácil lidar com animais? É, sem dúvida. Mas também sinto falta de conversas, de toque, de calor humano. E então convivo com animais.  E convivo com pessoas. E por isso não me falta nenhum pedaço. O melhor do mundo são os animais. E as pessoas. As pessoas não são perfeitas, perfeição é um conceito abstracto que só serve para ansiarmos por algo que nunca chegará. Às vezes é bom para nos fazer continuar a procurar mais e mais. Mas por vezes também nos rouba a capacidade de apreciarmos o que já temos à nossa volta.
Eu cada dia aprendo mais sobre os animais. E cada dia tento aprender mais sobre as pessoas, saber lidar melhor com elas e comigo, com as falhas delas e com as minhas.

Não é fácil ser-se humano, porque isso implica trabalharmos sempre para não deixarmos de o ser. Ser-se humano é um trabalho para a vida toda.


[Sol lucet omnibus]

Do voluntariado

Não posso presumir saber o que é o voluntariado para as restantes pessoas. Tenho a certeza de que todas têm diferentes motivações, objectivos, inspirações.
De minha parte, o caminho percorrido até ao voluntariado foi um caminho aleatório. Não albergava em mim um desejo crescente de ser voluntária.
Como referi anteriormente, os meus próprios medos interiores me impediam de me juntar à causa animal. Obviamente que há muitas outras áreas que pedem voluntariado, mas foi sempre algo que pensei que era tão bonito de se fazer que estava na lista do platónico, do hipotético, do utópico. Fui sempre percorrendo outros caminhos, caminhos esses que iam dar sempre a mim, ao que eu precisava, ao que eu queria, ao que eu sonhava, ao que me angustiava, sempre numa linha egoísta e narcisista, ainda que inocentemente, pois sempre acreditei que não era uma pessoa que só pensava em si. E efectivamente sempre pensei muito nos outros, sempre sofri muito a pensar no que os outros sofriam, como ainda sofro, porque penso, porque sinto, ainda que não queira, tenho verdadeiramente uma grande empatia em mim, sofro pelo outro. Mas por mais que pensasse nos outros, em última instância, pensava sempre em como é que determinada situação me iria afectar, não saía nunca da minha pele, não tinha capacidade de me colocar na pele do outro, era verdadeiramente deficiente, socialmente falando. Tenho uma grande capacidade de analisar pessoas. Os seus comportamentos, as suas expressões, a sua personalidade, prever até certas atitudes, sempre fui muito observadora, a condição humana sempre me intrigou e ironicamente conseguia analisar, mas depois não me era possível compreender, porque via apenas através dos meus olhos, do meu contexto, com as minhas ideias pré-concebidas, com os meus preconceitos. Gosto de pensar que já não sou totalmente assim, embora tenha ainda um grande caminho a percorrer.
Não procurei o voluntariado, ele encontrou-me. Penso que é também por isso que o que sinto por este trabalho agora é tão verdadeiro. Não senti em mim a necessidade de ser altruísta, aliás, penso que voluntariado é muito mais do que altruísmo ou a necessidade de nos sentirmos altruístas, pois também é isso que move algumas pessoas, o voluntariado é uma forma de escape, uma forma de sentirem que fazem algo pela sociedade, não porque necessariamente o queiram fazer, mas porque não gostam de como se sentem ao não fazer nada. Mas como disse, existirão tantas motivações quanto existem pessoas. Eu posso falar apenas da minha, a minha motivação era inexistente. Tropecei num caso, quis seguir o mesmo e quando ele estava resolvido já era tarde demais, estava presa no anzol, tinha de continuar a fazer aquilo, não porque era voluntariado, mas porque era a resposta para toda a minha inadequação social, o trabalho fazia sentido para mim, tinha tantas implicações sociais e humanas e no seu centro estavam os animais, podia ajudar os animais, prevenir sofrimento, não apenas agir depois do mesmo acontecer, pensar a longo prazo, pensar no futuro, proteger, educar, lidar com pessoas, sendo os colegas ou as pessoas de fora, que cuidam dos animais, que contactam a associação, fazer a tal diferença de que toda a gente fala. Mas incrivelmente, o que tenho vindo a descobrir nestes 11 meses desde que me juntei à associação, é que a maior diferença está em mim. Em 27 anos pouco ou nada fui modificando na minha forma de pensar, fui sempre muito teimosa, com visão de túnel, solitária, isolada, acreditando sempre que a minha forma de fazer as coisas era a melhor e nada aberta às outras pessoas, a outros pensamentos, a outras visões. Nestes 11 meses já cresci incomensuravelmente e continuo a crescer, a aprender e a evoluir. Não posso dizer que não continue com as minhas características marcadas, continuo, continuo a ter dificuldades em trabalhar em equipa, continuo a refugiar-me no meu canto, continuo a ter dificuldades em ser tolerante com as falhas alheias (tal como o sou com as minhas), continuo algo isolada e solitária. Mas tenho muito mais capacidade de me colocar na pele do outro, de compreender as suas motivações, de sentir mais do que empatia, uma ligação emocional que me torna parte de algo maior do que eu. Já não sou uma ilha. Descobri que tenho uma grande capacidade para lidar com pessoas se assim mo permitir, que sei conversar, que sei ouvir, que sei falar, respeitar e compreender. Penso que as mudanças ainda estão tão por dentro, que se calhar as pessoas que convivem comigo ainda não notam diferenças. Mas por dentro, ninguém tem bem a noção do quanto tudo está diferente e em constante mudança e evolução, tenho um autêntico big bang a acontecer em mim e ainda que lentamente, vou renascendo.
Ser voluntária, não significa nada. Voluntariado é apenas um nome. Não é altruísmo, ou pelo menos, quanto a mim, não deveria ser. É só mais uma faceta de alguém, alguém que fora daquele contexto tem muitas outras coisas. Encontrei esta definição de voluntariado, entre muitas, e penso que traduz exactamente aquilo que penso do mesmo:
O voluntariado é uma actividade inerente ao exercício de cidadania que se traduz numa relação solidária para com o próximo, participando, de forma livre e organizada, na solução dos problemas que afectam a sociedade em geral.

A parte mais gritante para mim é " é uma actividade inerente ao exercício de cidadania ", pois é precisamente assim que o vejo agora. Olhando para trás, não me faz sentido que tenha demorado tantos anos a fazer um trabalho que realmente signifique algo e que traduza aquilo que penso como cidadã. E é precisamente isso, ser-se cidadão. que deveria estar na base de qualquer motivação, ainda que inconscientemente. Participar na solução dos problemas que afectam a sociedade em geral. É isto, não poderia dizer melhor. Não interessa o nome que se lhe dá, somos cidadãos que participam na solução dos problemas que afectam a nossa sociedade. Obviamente que poderia pôr-me aqui a divagar sobre qual a melhor forma de fazer isto, sobre se todos os tipos de voluntariado ajudam a sociedade em geral ou apenas pessoas individuais, mas isso são reflexões para ocasiões futuras.

O mais importante no voluntariado é, não o que ele faz por nós, mas o que ele faz pelos outros. É isto que nos é incutido, o voluntariado é altruísta. Para mim, o voluntariado tem tantas facetas que nunca será possível concordarmos numa única definição. Mas na minha experiência, faz tanto pelos outros como faz por mim e pela minha forma de ver os outros e de ver o mundo, de o admirar e de o tentar compreender, de fazer a minha parte para o melhorar e deixar que ele melhore a pessoa que sou e altere a forma como me vejo.


[Vanitas vanitatum, et omnia vanitas]

No princípio era o medo

Sempre gostei de animais. Toda a vida convivi com cães, gatos e pássaros. Nunca fiz parte da causa animal, nunca me envolvi com nenhuma associação ou movimento, até 2014. Durante 27 anos fui apenas mais uma pessoa que gostava de animais, que cuidava dos seus o melhor que sabia, mas que procurava ou se dedicava a outras coisas na vida (parecem-me agora tal desperdício esses anos, perdida, sem saber exactamente qual o caminho que queria seguir, querendo tudo e nada, não me decidindo nunca por um objectivo). Parece ilógico que alguém que fervorosamente sempre defendeu os animais, se tivesse mantido afastada de toda e qualquer causa que os envolvesse. Ia fazendo o que podia no dia-a-dia, os meus gatos foram todos encontrados na rua, cheguei a encontrar 5 numa caixa, com um ou dois dias de vida, que tive de alimentar a seringa e posteriormente a biberão. Mas não procurava saber, não procurava envolver-me, não passava da linha do mínimo. Porquê? Por que motivo não procurava a satisfação de ajudar animais?

Medo.
(Não é esse o obstáculo mais frequente?)

Medo de quê?
Medo de não conseguir ajudar, medo de enfrentar a realidade, medo de ter pesadelos, medo de ver um animal na rua a precisar de auxílio e eu não ter coragem de o ajudar, Medo de ser confrontada com a minha própria cobardia. Porque uma coisa é fingirmos que não sabemos, longe da vista, longe do coração. Passarmos uma vida a evitar e a desviarmo-nos de toda e qualquer situação que peça a nossa acção. Outra coisa é estarmos numa situação que nos obriga ou a agir, ou a fugir, mas nesse momento já não podemos fingir. Tive sempre imenso medo de não ser capaz, de não aguentar as atrocidades, eu que sempre senti demais, tão intensamente, o bom e o mau, que sempre pensei demais, a todas as horas, o cérebro sem parar. Como é que eu iria conseguir lidar com tanto sofrimento? Era impossível, seria doloroso demais. E então sempre me escondi, procurei sempre sentir à distância, pensar à distância, sofrer à distância, ter pena e sentir pesar, de longe, ao ouvir histórias.

Isso mudou quando fui confrontada com um animal a precisar de ajuda. E eu, contrariando todos os instintos de auto-preservação emocional, movi céu e terra para o ajudar. E ajudei-o. E ao fazer isso incendiei algo em mim, um fogo que não apaga e precisa de ser alimentado. De repente tudo fez sentido, de repente já não me sentia paralisada pelo medo, pelo contrário, o medo impelia-me, exigia de mim acção, pois já não era o medo de fugir, era o medo de continuar a fingir.
Vieram muitos outros animais depois desse primeiro. Depois de 27 anos à procura não sei bem de quê, encontrei na causa animal uma voz que acreditava perdida, inexistente até. Esta é uma voz que não fala só de mim, que não fala só por mim, que é maior, maior do que eu.

Tenho em mim ainda muitos desejos e objectivos, paixões, quero escrever, quero fotografar, quero dar voz ao meu interior. Mas ainda que não consiga atingir nenhum desses patamares, sei que encontrei o que verdadeiramente me move, o que me faz sentir feliz e realizada, é isto que é suposto eu fazer, que deveria ter feito toda a minha vida e que quero fazer no tempo que me restar dela. Encontrei a minha vocação, o meu chamamento, a minha raison d'etre se quiserem. É neste trabalho que eu penso quando me levanto de manhã e é nele que reflicto quando me deito à noite. Não é especificamente na associação em que sou voluntária ou exclusivamente no tipo de trabalho que fazemos, é muito mais do que isso, é tudo. Quero aprender todos os dias mais, fazer cada vez mais, de forma mais abrangente e interligada. O trabalho a que me dedico especificamente é sem dúvida o que mais me apaixona, mas é apenas uma pequena roda na grande engrenagem que é a causa animal, que ao contrário do que muitas pessoas pensam, não está de todo afastada da causa humana, muito pelo contrário, são irmãs.

Ainda hoje sinto medo, ele não desapareceu. Continuo com o mesmo medo de me deparar com uma situação demasiado atroz, de não conseguir ajudar, de fugir. Mas todos os dias enfrento esse medo e essa situação hipotética ainda não aconteceu. E sim, vejo casos maus, vejo sofrimento, vejo atrocidades. Mas vejo também tanta humanidade, tanta esperança, felicidade, solidariedade. Vale a pena. Vale verdadeiramente a pena.

Já andei no mundo dos blogs e acabei por me esfumar, mas achei que estava na altura de voltar. Achei que devia partilhar a minha voz e a minha experiência com quem as quiser. E quem sabe encontrar pessoas que sentem da mesma forma esta ambiguidade naquilo que fazem, seja na causa animal ou noutro contexto qualquer.

Todos os dias me recuso a fechar os olhos, por mais que seja doloroso mantê-los abertos. Depois de ver, já não é possível deixar de ver, ainda que os olhos cegassem. E vejo coisas horríveis sim. E coisas maravilhosas também.

Demorei muitos anos a decidir ouvir-me e a encontrar-me, mas agora não esqueço quem sou.



[Nosce te ipsum]